segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Educação Cívica - Uma Prioridade


José Augusto Seabra

Se há combate prioritário para os republicanos, indissociável da luta permanente pela democracia, esse é sem dúvida o da Educação Cívica, sem a qual não pode existir uma sociedade livre, justa e fraterna , isto é, respeitadora de todos os direitos humanos, na tolerância e na solidariedade. Tal combate foi o das sucesivas gerações que, inspirando-se nas matrizes da educação e da democracia clássicas, hauridas nos gregos prolongadas na civilização europeia, lançaram as bases da educação e da democracia modernas, ao longo dos últimos séculos. Que foram as "luzes" senão uma irradiação de um ideário pedagógico de liberdade e para a liberdade, traduzindo-se numa mudança das mentalidades e dos comportamentos dos cidadãos, fundada na razão humana, face ao obscuratismo e aos preconceitos atávicos próprios de uma cultura conservadora dominate em épocas de "treva" ?

Todos os grandes mentores do liberalismo, como depois do republicanismo e do socialismo, se quiseram antes de mais pedagogos, à maneira de um Plutarco, através da escrita e do exemplo, propugnando as suas convicções com um proselitismo que era no essencial o da causa da formação de espíritos livres e por isso mesmo críticos e inconformistas, dentro do quadro das constituições e das leis democráticas, bem como da dialéctica das maiorias e das minorias, sem submissão a qualquer poder absoluto nem a qualquer dogma intangível.Veja-se a importância dada pelos liberais portugueses a essa causa, que levou um Almeida Garret a publicar um Tratado de Educação, bem como um Silvestre Pinheiro Ferreira, filósofo empenhado na promoção do civismo, a escrever um Manual do Cidadão em um Governo Representativo...

Mais tarde, já na proximidade da República, Trindade Coelho lançaria o Manual Político do Cidadão Português, adaptado do suiço Numa Droz, verdadeira sistematização de todos os domínios da polis que o cidadão comum devia conhecer, para exercer devidamente os seus direitos e os seus deveres. Essa campanha pela cidadania foi feita aliás entre nós de diversas formas, nomeadamente através da imprensa, como o mostram As Farpas, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, que na geração de 70 se empenharam em escalpelizar as mazelas de uma sociedade decadente, opondo-lhe os modelos de vida das sociedades mais evoluídas.Durante a República, a preocupação com a instrução cívica cresceu, mesmo se a prática da política partidária não era, tantas vezes, conforme aos príncipios e aos métodos do civismo democrático.

Daí os alertas que alguns movimentos culturais mais críticos desses desvios, como a Renascença Portuguesa e a Seara Nova, lançaram então, pugnando por uma maior atenção à educação para a cidadania, sob pena de consequências previsíveis para o regime. E foi assim que António Sérgio publicou, sob a chancela da primeira, o livrinho Educação Cívica, que se tornaria o paradigma de uma pedagogia do "auto-governo" nas escolas, a qual se deveria alargar segundo à educação profissional. A sua preocupação com o fomento do espírito cívico como fundamento de uma democracia autêntica revelou-se justa, com a queda da República. E por isso mesmo Sérgio continuou o seu apostolado, já sob a ditadura, tendo publicado uma versão alterada do mesmo livro para escapar à censura.

Só depois do 25 de Abril seria reeditada a versão original, pelo Ministério da Educação, quando dele fomos responsável, com um prefácio de Vitorino Magalhães Godinho.Com o advento da Democracia teria sido de esperar - era o mínimo exigível - que a Educação Cívica se volvesse enfim a prioridade das prioridades do sistema educativo, pois se tratava de formar para a cidadania gerações que a ela não tinham tido qualquer iniciação, antes pelo contrário, apesar de todos os sucedânios e os simulacros da ditadura.

Nada disso porém aconteceu. Logo os "revolucionários" mais radicais e extremistas que formam conta da Educação se preocuparam, antes, em condicionar ideologicamente os jovens, como sinal contrário, a "Organização Política e Administrativa da Nação" do regime anterior... E uma vez restabelecido o equilíbrio democrático, após o PREC, as reservas e barreiras continuaram, agora provindas de sectores simétricos, mais interessados em impor sem alternativa uma desciplina de "Religião e Moral Católicas" em exclusividade.Essa situação escandalosa não deixou de impor-nos, quando em nome de um governo de coligação largamente maioritário exercemos funções ministeriais, o dever de corrigir tal anomalia.

Foi o que tentámos, no 10º aniversário ao 25 de Abril, ao criar a disciplina de Educação Cívica, depois de um estudo preleminar cometido a uma comissão pluratarista e independente, de que faziam parte Maria Helena Carvalho do Santos, então Secretária de Estado Adjunta, António Ferreira da Costa, Natália Correia, Jacinto de Magalhães, Fernando de Sousa e outros. Estabelecido o curriculum e delineado o programa, a disciplina deveria ter entrado em vigor no ano seguinte. Mas foi metida na gaveta pelo ministro que se sucedeu, sem qualquer razão explícita! E entrou-se de novo numa fase de descanso, que só mais tarde foi em parte superada, sob o manto da chamada "formação pessoal e social"... O sintagma Educação Civica faz medo ! E o argumento da "transversalidade" dessa educação serve para diluir o peixe na água, "economizando" pretensamente uma disciplina específica...Felizmente, estão a ser dados passos certos enfim, para que a Educação Cívica conheça uma nova renascença. Temos de lutar por ela, vencendo preconceitos e alergias. É esse um dos combates prioritários dos republicanos.

Bucareste, Novembro de 1999

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