sexta-feira, 24 de agosto de 2018

24 de AGOSTO


A Constituição de 1822 é o mais antigo texto constitucional português e, tecnicamente, um dos mais bem elaborados. Se bem que não tenha dado origem propriamente, a uma prática constitucional exerceu uma influência profunda nas instituições e no direito político, iniciando em Portugal "a organização jurídica da democracia" (Joaquim de Carvalho).
Quando celebramos o 24 de Agosto celebramos a liberdade.
Fazemo-lo conscientes que o liberalismo e a liberdade são o traço indelével do nosso posicionamento no quadro do pensamento político do país. Contra todas as entropias, iniciadas em 1824 e repetidas no decurso da nossa história, esta matriz axiológica mantém-se atual. Pesem embora as reiteradas tentativas da sua diluição é ao conjunto de valores que encerra que sempre regressamos.
Mas dirão os mais incautos que é celebração de pouca monta porquanto as democracias não questionam a liberdade. Desenganem-se, pois a democracia pode gerar a sua própria diluição no encalce de sedutoras promessas.
Percorrendo a vida e desempenho profissional e político de Manuel Fernandes Tomás percebemos como a tarefa de construção e preservação destes ideais é árdua e persistente. Celebrar é para além de recordar, o momento de reflexão que se impõe.
O sinédrio fundado por Manuel Fernandes Tomás, José da Silva Carvalho, José Ferreira Borges e João Ferreira Viana agregou mais nove cidadãos portuenses que em 24 de Agosto partindo do Campo de Santo Ovídio, na cidade do Porto, levantaram o movimento que pôs cobro a um regime ilegítimo, indigno, desumano e caduco – o absolutismo. Ao regime que agonizava impunha Fernandes Tomás a força das suas sedutores e vibrantes convicções, verberando aos membros do Sinédrio um insistente grito de indignação com a expressão «Ficaremos nós assim? ou devemos continuar este aviltamento?»
Sobre a gorada conspiração de 1817 liderada por Gomes Freire pronunciou-se Fernandes Tomás, em recato, dizendo: « este estado de coisas é impossível que persista; há de haver necessariamente revoltas e anarquia; preparemo-nos e formemos um corpo compacto que apareça nessa ocasião para dirigir o movimento  a prol do país e da sua liberdade».
E assim surgiu o sinédrio, como resposta ao aviltamento. Os quatro fundadores solenemente juraram salvar a pátria e por ela dar o seu sangue e morrer, abafados nas bases do magnífico edifício que iam levantar. Os seus propósitos eram «observar a opinião pública e a marcha dos acontecimentos, vigiar as notícias da vizinha Espanha» para que, se rompesse um movimento anárquico ou uma revolução, os membros do sinédrio se combinariam para aparecer a conduzi-la para bem do país e da sua liberdade, guardada sempre a devida fidelidade à dinastia da casa de Bragança ( Veja Ensaio Histórico Biográfico de MFT do Professor José Luis Cardoso – 1983 pag.44 e ss citando José Maria Xavier de Araújo , Revelações e memórias para a história da revolução de 24 de Agosto de 1820 e 15 de Setembro do mesmo ano).
 O pensamento político de Fernandes Tomás é denso e ponderado. Ao contrário do que se possa pensar o nosso ídolo não foi um arrebatado e inconsequente revolucionário, sempre pautou a sua atividade administrativa e judicial pelo mais rigoroso cumprimento da lei de acordo com as elementares regras da ética e da prudência. Foi a distorção da lei, o uso e abuso de posição dominante e a anunciada perda de soberania que o inquietou. Fervoroso patriota repudiou todas as redações internacionalistas e liderou a elaboração de um documento ponderado e libertador que a par do mais progressista que se ia produzindo na Europa não descurava os necessários equilíbrios na ponderação da separação dos poderes, bem como o tributo de deveres inerente à atribuição de direitos.
Sendo revolucionário foi um reformista, foi consagrado o primeiro dos regeneradores. Direi que foi um conservador progressista. Mais do que a colocação ideológica interessava-lhe a definição das regras elementares de sã coexistência entre todos os cidadãos por critérios de inabalável justiça.
Por isso estava atento ao tempo e suas circunstâncias, manifestamente preocupado com a inconsequência dos atos e das decisões precipitadas que por natureza poderiam comprometer o sucesso da necessária transformação política.
Na pertinente caracterização do Professor José Luis Cardoso o sinédrio trata-se de uma associação de observação e vigilância, que não se pretende vocacionada para implementar qualquer ato conspirativo ou congénere ( a memória dos «mártires da pátria» ainda estava fresca ), que apenas intenta organizar e dirigir um movimento que surgisse  das entranhas do tecido social insatisfeito. O Sinédrio não era de modo algum um partido politico, na aceção moderna que se faz do termo. A solidariedade política e moral que unia os seus membros vincava-lhe uma característica de coesão, concebida num estado de permanente expectativa.
Como o significado expressa, estamos perante um supremo conselho em várias matérias. Veja-se o cuidado que presidiu à cooptação dos demais elementos.
A 22 de Janeiro de 1818 teve lugar em casa de José Ferreira Borges, advogado da Relação do Porto, secretário da Junta da Companhia dos vinhos do Alto Douro e sindico da Câmara Municipal, a primeira sessão regular do Sinédrio onde estiveram presentes os seus quatro elementos fundadores. Além do dono da casa, Manuel Fernandes Tomás, José da Silva Carvalho – Juiz dos órfãos e João Ferreira Viana – comerciante.
Nessa mesma noite há lugar a uma sessão em casa de Fernandes Tomás e em 10  de Fevereiro entra para a associação - Duarte Lessa (comerciante e proprietário); na mesma residência a 3 de Maio entra José Maria Lopes Carneiro (comerciante e proprietário) e José Gonçalves dos Santos Silva (comerciante e proprietário); a 6 de Julho José Pereira de Meneses (comerciante), em casa de Ferreira Borges; ainda nesse ano Francisco Gomes da Silva (médico) e João da Cunha Souto Maior (magistrado); a 5 de Junho de 1820 José de Melo de Castro Abreu Pereira (moço fidalgo da casa real, coronel de Milícias da Beira), em 22 de Junho José Maria Xavier de Araújo (magistrado) e em 19 de Agosto Bernardo Correia de Castro Sepúlveda (oficial do exercito).
Todos estes homens livres e de bons costumes, residiam e habitavam no Porto e era nesta cidade que desempenhavam as suas profissões sob o jugo do aviltamento a que Fernandes Tomás aludia. A expectativa de mudança que os homens do Sinédrio acalentavam, justificava-se pela situação real em que o país se encontrava: país sem rei, entregue aos cuidados governativos de uma regência dominada pelos ingleses; ingleses que igualmente controlavam os postos chave da hierarquia do exército do reino; reino que se vira em estado quase ruína, sulcada pelas invasões francesas, e que agora se via trespassado a novos ocupantes (José Luis cardoso pag 47).
Os comerciantes sufocados pela dominância Inglesa, os militares subordinados a oficiais estrangeiros e os Juízes sujeitos ao livre arbítrio e incerteza da lei aplicável. Havia razões suficientes para agitar, discutir e procurar alternativas de governo.
Sem qualquer razão determinista, os nossos homens de inspiração liberal procuraram o necessário apoio militar e concluíram com êxito o pronunciamento de 24 de Agosto como corolário das motivações de mudança social e política que se faziam sentir.
No campo de Santo Ovídio foi celebrada missa campal perante a presença da guarnição militar do Porto, e aí se deu início ao primeiro e efémero andamento do liberalismo português. No momento em que o capelão levantava a hóstia, deram-se vivas à liberdade, sob a moldura sonora da salva de artilharia.
A causa liberal alastrou nas províncias do norte, conforme relações e contactos pré-estabelecidos. Lisboa não ficou inativa. No dia 15 de setembro aderiu ao movimento liberal em reunião realizada em Alcobaça.
Como referiu o distinto Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – nas comemorações de 2017:  A essência, o conteúdo ideológico de 24 de Agosto de 1820 e as linhas de convergência entre os ideólogos vintistas, vinham da Universidade de Coimbra da Reforma pombalina, da magistratura e do domínio das leis nacionais.
É circunstância que Cecília Honório anota: a hegemonia discursiva e a obra da revolução de 24 de Agosto de 1820 devem-se em boa parte a magistrados saídos da Universidade de Coimbra, tanto no sinédrio (6 em 13) como nas Cortes Constituintes ( 39 em 100).
E de entre todos, a persistência e a liderança de Manuel Fernandes Tomás na criação do Sinédrio, na junta Provisional e nas cortes extraordinárias e Constituintes.
Na guerra Civil de 1832 – 1834, entre Absolutistas e liberais, o Porto e seu povo foram determinantes para a vitória do liberalismo. Depois da tomada do Porto pelos Liberais seguiram-se 13 meses com várias batalhas sangrentas. A situação, para os habitantes do Porto, começou a tornar-se desesperada: epidemias, fome, atraso nos pagamentos, deserções, etc. Mas o Porto nunca foi vencido pelos Miguelistas – daí a justa denominação que lhe é dada, desde essa altura, de cidade Invicta (Diogo Freitas do Amaral – Da Lusitânia a Portugal pag. 273).
E aqui estamos nesta homenagem que nos une na cidade que gerou e criou o movimento – na cidade Invicta do Porto.
Acrescentaria a propósito deste nosso encontro, sempre invicta na defesa dos valores da liberdade. A afirmação deste ideal repetiu-se, entre outras datas, em 1958 com Humberto Delgado e em 1975.
A Câmara Municipal da Figueira da Foz assume a promoção da figura de Fernandes Tomás, da sua memória e do seu legado, como património cultural da cidade e do País e os princípios humanísticos e liberais do ideário do seu mentor.
Partilhar com a Junta de Freguesia do Bonfim, o seu Presidente e seus ilustres cidadãos este momento de consagração é motivo de regozijo, principalmente porque comemoramos o bicentenário do Sinédrio fundado por um ilustre Figueirense. Na Figueira da Foz nasceu e foi autarca, em Coimbra fez a sua formação e no Porto foi juiz Desembargador, percursos que não me são alheios.
Sendo Manuel Fernandes Tomás o homem que foi, só posso agradecer a oportunidade que me concederam de o poder enaltecer hoje 24 de Agosto, na vossa Cidade Invicta.
Muito obrigado.

JA

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