sábado, 17 de janeiro de 2009

O 31 de Janeiro e a cultura cívica europeia


por José Augusto Seabra

Não é possível que o Porto, "capital europeia da cultura", deixe na sombra um acontecimento-chave da sua história moderna, que o colocou por um momento à altura da Europa democrática mais avançada da época, como o foi a revolta republicana do 31 de Janeiro de 1891. Culminando uma tradição de rebeldia cívica que emergiu da sua condição de "república urbana", émula da Flandres e da Itália, como o mostrou Jaime Cortesão, e que iria desembocar na revolução vintista de depois no movimento setembrista e na Patuleia, o levantamento militar e popular portuense contra o Ultimatum, liderado por figuras da têmpera de um Sampaio Bruno, de um Basílio Teles ou de um João Chagas, foi uma afirmação heróica e trágica não só de um ideal patriótico mas universalista, que a República, proclamada numa breve manhã de glória na varanda da Câmara Municipal por Alves da Veiga, emblematicamente simbolizava, na bandeira verde-rubra içada ao som da Portuguesa.

Se tivesse sido vitoriosa, o que a fatalidade e uma certa ingenuidade táctica não permitiram, a República do Porto seria, sem dúvida, uma das primeiras da Europa, desencadeando uma vaga idêntica noutros países, sobretudo do sul, que poderia ter modificado a geografia política do continente, como os emigrados republicanos, pela pena do Bruno, no seu Manifesto publicado em Paris, disso se afirmavam convictos. Vencidos no campo da honra, nem por esse facto eles deixaram de justificar assim o seu dever revolucionário, que como um imperativo categórico os impelira a saírem para a rua até serem afogados em sangue na ladeira fatídica de Santo António, apesar da coragem dos oficiais, dos sargentos e dos soldados, ladeados pelo povo anónimo e conduzidos por chefes como o alferes Malheiro, o capitão Leitão ou tenente Coelho, às ordens dos chefes civis empolgados mas pouco preparados para o combate das armas.

Em todo o caso, como escreveu João Chagas, o 31 de Janeiro foi "o mais luminoso e viril movimento de emancipação que ainda sacudiu Portugal no último século". E por isso mesmo Basílio Teles aduziu, em defesa dos republicanos do Porto, que "os erros que cometeram, prejudicando, tal vez, a obra concebida por inteligências mais lúcidas e ânimos mais decididos, a posterioridade lhos perdoaria em atenção ao que sofreram, enquanto a monarquia roubava". É que, com o seu sacrifício, os heróis do 31 de Janeiro fecundaram o húmus de onde iriam brotar as sementes vivas que no 5 de Outubro de 1910 haveriam de germinar na República democrática enfim vitoriosa.

Dar a conhecer essa jornada histórica é , pois, muito mais do que celebrar uma efeméride. Sem uma reflexão acerca do significado cívico do que foi a última grande oportunidade que o Porto teve de estar à frente do país, não ressurgirá nas gerações actuais uma consciência clara do peso que a nossa cidade sempre deve assumir na vida nacional e internacional. Teria sido, pois, de desejar que esse acontecimento fosse seleccionado como um dos que melhor representa a cultura europeia do burgo. E existem razões de sobejo para fazer do 31 de Janeiro não apenas um evento político mas intelectual, pois, as grandes figuras já citadas que o encararam foram paradigmas do que de melhor a cultura portuense produziu: desde a filosofia e a teodiceia do pendor esotérico de Sampaio Bruno à visão histórica e humanista de Basílio Teles. Sem esquecer o eco poético que com a Pátria de Junqueiro o 31 de Janeiro também teve, num dos poemas que Fernando Pessoa considerava uma "obra capital" da literatura portuguesa, ombreando com Os Lusíadas. E mesmo António Nobre, expatriado na sua "Lusitânia no Bairro Latino", vibrou com a revolta do Porto, ao dela lhe chegar a nova.

Nessa geração revolucionária entroncaram muitas das aflorações posteriores não só do republicanismo, nas suas várias tendências, mas do espírito ao mesmo tempo patriótico e europeu dos movimentos culturais portuenses. Ainda na sua estreia, a "Renascença Portuguesa" iria, já em plena República, fazer do Porto o centro de reencontro das grandes tradições nacionais com a modernidade pela conjunção da traditio e da revolutio que a caracterizou. Alérgica tanto ao centralismo jacobino como ao positivismo que enformou a República oficial, ela herdou do pensamento de um Bruno uma outra energia criadora, que se patenteia nas personalidades de um Jaime Cortesão e de um Leonardo Coimbra, republicanos heterodoxos, e assume um tom mitográfico na figura carismática de Teixeira de Pascoaes, republicano à sua maneira saudosista.

A evocação do 31 de Janeiro há-de ser para nós, hoje, não uma simples nostalgia, que continua a levar às campas dos Vencidos a fidelidade reconhecida dos correligionários irmanados dos ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade, mas também uma afirmação viva desta nossa Segunda República, continuadora das lutas que, ao longo de mais de um século e neste limiar de milénio, deram ao povo português a sua dignidade e autonomia cívica, sem as quais, quer no plano político quer no plano ético, não há democracia digna desse nome. Neste ano em que o Porto é uma das capitais europeia da cultura, façamos desta data um "sinal do ressurgir" de uma outra cidade que seja, acima de tudo, uma autêntica polis.


Maio de 2001

DO 31 DE JANEIRO AO 5 DE OUTUBRO

* José Augusto Seabra

A vitória do 5 de Outubro e a implantação da República como um regime identificado com o povo português, a tal ponto que nem a ditadura conseguiria de todo erradicá-la, foi a culminância de uma luta de sucessivas gerações que, no seio do Liberalismo, quando este entrava em crise larvar, souberam difundir coerente e corajosamente o ideário cívico e político democrático, face à decadência da Monarquia declinante.

Após a geração dos pioneiros, o Partido Republicano organizou-se e fortaleceu-se a pouco e pouco, através de uma militância e de uma propaganda crescentes, à imagem do que se passava na Europa e até no resto da Península .A sua inflexão de uma orientação federalista ibérica para uma linha predominantemente patriótica, que com o tricentenário de Camões, em 1880, se veio a afirmar, contribuiu sem dúvida para que se entranhasse entre os portugueses a consciência de que " a República é a Nação", como numa fórmula lapidar a caracterizou Sampaio Bruno, dando um sentido universalista e não "nacionalista" à expressão.

Mas foi sobretudo com o protesto nacional contra o Ultimatum inglês de 1890, liderado pelos republicanos perante a claudicação dos partidos monárquicos, que esse sentimento de uma íntima consubstanciação da República com a Pátria se selou com sangue, através da revolta do 31 de Janeiro de 1891 no Porto, vencida no campo da honra mas cujas sementes iriam fecundar o crescendo do republicanismo até ao 5 de Outubro de 1910.

Os republicanos portuenses que, ao arrepio do directório do seu partido, prepararam e fizeram eclodir o levantamento revolucionário – de João Chagas a Alves da Veiga, de Bruno a Basílio Teles – com o apoio de um punhado de oficiais, sargentos e soldados, como o capitão Leitão ou o alferes Malheiros, eram movidos ao mesmo tempo por um ideal patriótico e por um ideal político, o que os levou, no Manifesto dos Emigrados, depois publicado no exílio de Paris, a compararem o 31 de Janeiro ao levantamento nacional de 1385 e ao pronunciamento restaurador de 1640, ambos em luta pela independência.

Se outra então a estratégia legalista do Partido Republicano, este acabou afinal por colher os frutos da revolta do Porto, pois ficou provado que a Monarquia podia ser derrubada e tinha os seus dias contados. Menos de vinte anos depois, ela cairia às mãos dos revolucionários da Rotunda, depois de os republicanos terem esgotado a sua luta no plano eleitoral, do mesmo passo que os partidos monárquicos se desacreditavam, concomitantemente com a dinastia de Bragança.

Os heróis de 5 de Outubro – alguns deles tragicamente sacrificados, como o Almirante Reis e Miguel Bombarda – deram o golpe final num regime corrompido, desacreditado e impopular, abrindo uma nova era na história do nosso país, que se tornou então o terceiro Estado republicano da Europa, ao lado da França e da Suíça. Depois da instalação do Governo Provisório, presidido por Teófilo Braga – um dos principais ideólogos do republicanismo -, a Constituinte dotou o regime de uma Constituição democrática, tendo a República iniciado um conjunto de reformas jurídicas, administrativas, sociais e educativas importantes: da separação da Igreja e do Estado à instituição do divórcio, da descentralização à democratização fiscal, do fomento da assistência pública à protecção da infância, da modernização da Universidade à simplificação ortográfica.

As vicissitudes e crises do regime, parlamentar e jacobino, marcado pela exacerbação das divisões partidárias, após a cisão do Partido Republicano em três – o Democrático, o Evolucionista e o Unionista –, juntas as conspirações monárquicas e ultramontanas, enfraqueceram entretanto a República, que teria de assegurar ainda a participação de Portugal na Grande Guerra, sendo pouco a pouco desgastada por contradições internas e pela agressividade da reacção nacionalista, que levaria ao golpe do 28 de Maio e à instauração da Ditadura Militar, prelúdio do "Estado Novo" salazarista, o qual oprimiria o povo português durante meio século.

A república democrática ficou, porém, na memória mantida viva pelos democratas na resistência e na oposição à ditadura, através de prisões e exílios. As celebrações do 31 de Janeiro e do 5 de Outubro foram sempre grandes jornadas de combate pela liberdade e pela democracia. E quando estas foram reconquistadas, com o 25 de Abril, continuaram a sê-lo. Por isso estamos de novo, uma vez mais, a lembrar às jovens gerações o que foi a longa marcha do republicanismo em Portugal, que abriu caminho à sua pertença actual à Europa e ao mundo livres.